sábado, 24 de maio de 2008

Revisão do Regulamento de Trabalhos Arqueológicos

Conforme anunciado desde há alguns meses, a Associação Profissional de Arqueólogos tem vindo a preparar um documento-base sobre o processo de revisão do actual Regulamento de Trabalhos Arqueológicos (Decreto-Lei nº 270/99, de 15 de Julho). Este documento, que agora se apresenta para discussão pública sob a forma de uma primeira versão de trabalho, foi já entregue aos vários grupos parlamentares por intermédio da Comissão Parlamentar de Ética, Sociedade e Cultura.

A Direcção da Associação Profissional de Arqueólogos solicita a colaboração de todos os interessados com contributos que possam vir a enriquecer este documento, já que o processo ainda está numa fase muito embrionária e, como todos sabemos, urge dotar a Arqueologia, o Património Arqueológico e a profissão de um enquadramento normativo mais adequado à realidade que hoje vivemos.

Data limite de recepção de contributos para esta versão do documento foi alargada até 31 de Outubro de 2008.



6 comentários:

ccosta disse...

Relativamente aos trabalhos preventivos de obras eu sou da opinião de que o arqueólogo só deve abandonar uma determinada empreitada quando é levantado o estaleiro ( não sendo necessário como é óbvio estar presente o tempo todo, mas dar assessoria a uma determinada empreitada tendo de deslacar-se a esta sempre que necessário).
Tal como o técnico de ambiente; o técnico de segurança ou mesmo a direcção técnica da empreitada.

Dos exemplos que verifico, e que apesar de terem sido realizadas as escavações até ao substrato geológico; os trabalhos de deslocação de entulhos e outro tipo de inertes sem acompanhamento podem colocar em causa a destruição de um sítio ou a ocultação deste ( por desconhecimento...)
Um outro exemplo são as colocações de vedações ( no final da obra)nos limites da propriedade, em que se abrem novos acessos para as máquinas( nesta tarefa raramente ainda está um arqueólogo como responsável pelos trabalhos) .
As inúmeras escavações ( ex:de sinalização ) que surgem como trabalhos a mais e não aparecem nos planos de trabalhos e ou nos projectos.

Tomar em consideração os centros históricos de pequenas vilas e aldeias cujo acompanhamento arqueológico tem vindo a ser preterido e esquecido ( cabendo ao Instituto da tutela definir estratégias colaborando com as Câmaras municipais as linhas orientadoras de quantas povoações existem no seu território com potencial arqueológico.

Garantir e defenir quando se devem fazer trabalhos de carácter preventivo ( por vezes para se fazer uma estrada existe acompanhamento mas para se fazer uma urbanização já não se verifica ; isto apesar de grande parte das vezes o volume de terras a escavar ser superior na urbanização).

Garantir a fiscalização de trabalhos de construção civil e obras públicas ( envio das autarquias à tutela das obras ou maior colaboração entre os gabinetes de arqueologia e os de urbanismo)que necessitem de trabalhos arqueológicos ( não fiscalizando deste modo só os trabalhos arqueológicos).

JR disse...

O documento de trabalho em análise não é, compreensivelmente, muito explícito nas soluções preconizadas para os “aspectos a necessitar de revisão / clarificação” no RTA, pelo que só podemos manifestar uma concordância generalista, deixando para fase mais avançada a necessária avaliação de pormenor do que vier a resultar deste processo.

Para já, queria deixar apenas duas notas.

A primeira respeita à definição e tipificação dos trabalhos arqueológicos. Para além da chamada de atenção para a necessária clarificação da figura dos acompanhamentos arqueológicos e das condições de exercício da Arqueologia em meio aquático, é importante clarificar também o estatuto dos estudos de materiais arqueológicos, até porque os níveis de qualificação técnica e de responsabilização que envolvem são bastante diversos dos relacionados com as intervenções arqueológicas de campo (seja este “campo” sólido ou líquido) – por exemplo, o responsável pelo estudo de uma colecção numismática terá mesmo de ser um arqueólogo?
O mesmo sucede com as intervenções de conservação de bens móveis ou imóveis de natureza arqueológica, nomeadamente aquelas que se realizam por razões de natureza museológica, de conservação ou valorização, e não no contexto estrito da actividade arqueológica (de projecto ou outra), onde se terá de acautelar a responsabilidade científica de outros profissionais – por exemplo, num programa de valorização de um sítio arqueológico, como compatibilizar a acção profissional de arqueólogos, conservadores, arquitectos, museólogos…? Em que termos e com que nível de responsabilidade terá um arqueólogo de formular um pedido de autorização à sua tutela?

A segunda relaciona-se com a incorporação dos mecanismos de avaliação arqueológica no planeamento e ordenamento do território. Se considerarmos que é a nível municipal que se produz boa parte, não só desse planeamento, mas do subsequente licenciamento das mais diversas obras, é importante que se criem mecanismos eficazes de circulação da informação entre a instituição de tutela, a nível central, e a administração pública local. As autarquias, e particularmente os respectivos serviços de Arqueologia (independentemente do seu enquadramento na orgânica municipal), terão de ter conhecimento actualizado dos trabalhos autorizados no território que gerem e, principalmente, dos seus resultados. Daí a necessidade de criar procedimentos para que os relatórios finais também aí cheguem (em formato digital, por exemplo, para não onerar desnecessariamente os custos de quem os produz), desde que garantido o respeito pelos direitos de autor e de reserva científica.

Jorge Raposo

ccosta disse...

Quanto ao regulamento gostaria de levantar a seguinte questão relativa à arqueologia preventiva.
Porque é que não se fazem acompanhamentos em aldeias; porque é que não se fazem acompanhamentos de urbanizações ( expansões urbanas); porque é que não se fazem acompanhamentos da maioria dos saneamentos municipais enquanto se fazem dos multimunicipais?
porque é que não se fazem acompanhamentos de todas as redes de gás ?
Porque é que se fazem acompanhamentos nas estradas do E.P.; BRISA das SCUT e não se fazem na maioria das municipais Florestais e particulares?

Só com os acompanhamentos e prospecções é que poderemos identificar sítios sem que eles sejam destruidos sem registo

Penso que só com uma obrigação legal poderemos avançar para uma arqueologia dita de futuro ( tal como se faz nos países nórdicos).

PF disse...

Caro ccosta,

As dúvidas que coloca são pertinentes, embora, em alguns dos casos, os objectivos a atingir me pareçam exagerados e a raiar uma posição fundamentalista que, levada ao extremo, implicaria que não se poderia fazer nenhuma obra nem nenhuma intervenção no solo, por mais pequena que ela fosse, sem acompanhamento arqueológico.

No entanto, qualquer transformação do alcance da intervenção arqueológica obrigatória (em sentido lato) deverá passar por alterações a diplomas de enquadramento de nível superior relativamente ao Regulamento de Trabalhos Arqueológicos. Este poderá definir o que é uma intervenção de arqueologia preventiva ou o que é a figura do acompanhamento arqueológico, mas nunca o que se deve ou não intervir e em que condições.

Miguel Almeida disse...

Quase hesito em enviar este longuíssimo comentário, para o qual este meio é claramente impróprio.
Porém, não vejo como responder em poucas linhas à solicitação da APA.
Eis:

Como diz o Jorge numa das (poucas) intervenções que esta questão suscitou no blogue proposto pela APA, trata-se ainda de um documento muito genérico e com o qual pouco mais se pode fazer do que… concordar na generalidade.
De qualquer modo, importa começar por dizer que concordo claramente com o rol dos problemas discutidos. Estes constituem os pontos fundamentais para o futuro da actividade arqueológica em Portugal. Alinho, entretanto, algumas observações, que seguem a estruturação por pontos do texto original:

1.1
Concordo com a crítica relativa à necessidade de uma definição mais rigorosa dos tipos de trabalhos de Arqueologia, mas esta definição não deve surgir (nem pode substituir!) este artº 2º. A definição deste artigo é intencionalmente genérica, abrangente e sem carácter descritivo. Pelo contrário, se se optar por uma redacção de enumeração (“são considerados trabalhos arqueológicos: o acompanhamento arqueológico, a escavação, etc, etc.), ficará aberta a discussão sobre a integração de um sem número de situações possíveis (e, por definição, impossíveis de enumerar e descrever exaustivamente) numa ou noutra das categorias enumeradas… ou em nenhuma! Com todas as consequências nefastas possíveis.
Este preceito geral não pode portanto deixar de ter um carácter abrangente e não descritivo.
Outro problema, é a dita necessidade de tipificação das diferentes “espécies” de trabalhos arqueológicos. É indispensável, mas deverá ser incluída posteriormente, noutra secção deste regulamento.

1.3
Não estou muito certo de que seja preciso mexer demasiado nesta categorização. De facto, há um limite para os trabalhos relacionados com a Arqueologia e o material arqueológico que necessitam de autorização — caso contrário seria necessária autorização também para abrir a vitrina e passar o espanador. Deve discutir-se onde passa esse limite da necessidade de autorização. Só depois surge a discussão da necessidade de outra categoria. Quanto aos trabalhos intrusivos, a que esta categorização se destina primordialmente, parece-me genericamente uma boa solução.
Não obstante, estou de acordo que há aqui alguns conceitos um pouco vagos a concretizar, como por exemplo a referência na Cat. B aos “projectos de valorização”.

1.4
Um ponto fundamental.
No actual RTA introduziu-se como norma prospectiva da maior importância o artº 9, relativo à escavação de necrópoles. Esta norma, que desempenhou honrosamente a sua função, está hoje ultrapassada pelos acontecimentos e urge remodelá-la, aprofundando a intenção do legislador inicial.
Com efeito, o tratamento dado ao registo osteoarqueológico continua a constituir um problema premente, visto que continua a ser vandalizado diariamente pela comunidade arqueológica, mesmo por vezes com a participação (às vezes pouco mais do que teórica!) de “especialistas em Antropologia física”.
Proponho por isso uma profunda alteração deste artº, para uma redacção do género da seguinte:
1. A escavação de necrópoles onde se presume venha a ser encontrado espólio antropológico só será autorizada caso a equipa técnica integre como co-director da intervenção um especialista em Arqueotanatologia.
2. A presença no terreno do co-director de Arqueotanatologia é indispensável durante a totalidade da duração dos trabalhos de escavação e recuperação dos vestígios osteoarqueológicos.
3. Nos casos em que o espólio antropológico surja inesperadamente durante a execução de uma intervenção arqueológica, a prossecução dos trabalhos fica condicionada à inclusão expressa de um especialista de Arquetanatologia na equipa de Arqueologia.
4. A autorização para a realização de escavações em cemitérios históricos só será concedida se os promotores comprovarem que a realização desses trabalhos merece a concordância das autoridades responsáveis.
Notas importantes:
- No caso específico das necrópoles, não é suficiente a participação de especialistas. Por força da relevância primordial do registo osteoarqueológico nestes contextos impõe-se a co-direcção da intervenção;
- Por outro lado, devem prever-se os critérios de acesso a este estatuto de “especialista”, para, como antes, não incluirmos no regulamento conceitos não especificados;
- “Arqueotanatologia” porque a prática revelou insuficiente a anterior referência a especialistas de “Antropologia física”, na medida em que a norma visa sobre tudo salvaguardar a qualidade dos trabalhos de recuperação no terreno do espólio osteoarqueológico. Também me parece já assumido pela generalidade dos antropólogos capazes deste país (e foi bem difícil espalhar a boa nova por todos!) que se não pode admitir o estudo dito(!) antropológico de colecções de que se desconhece a história tafonómica (salvaguardado, claro, o estudo possível de séries procedentes de escavações antigas).
- Tal como no caso dos arqueólogos directores, a presença continuada no terreno é indispensável.

2.1
Outra questão fulcral. Claro que a separação dos diferentes níveis de “autorização”, “credenciação”, etc. não foi incluída no RTA de 1997 por… graves insuficiências da realidade com o legislador então se deparava no sector profissional e económico da Arqueologia.
Penso que, pese embora a situação difícil actual a que o preâmbulo do documento da APA faz referência, a que deve ainda juntar-se uma degradação progressiva da qualidade da formação (bom, para ser mais rigoroso, uma quase estagnação, que nos conceitos actualmente em vogo nos coloca “em divergência com a média europeia”), talvez estes dez anos tenham trazido em relação a este problema particular algum amadurecimento. O que pode permitir intentar a inclusão de uma solução (ou pelo menos de uma pré-solução) numa próxima revisão do RTA.
Mas a questão deve ser vista de uma perspectiva bastante abrangente e, neste sentido, não poderá deixar de incluir o problema da diversidade de “responsabilidades” na realização das intervenções de Arqueologia, que o documento da APA muito bem foca no ponto 3. Trata-se aqui, claro, da credenciação das entidades colectivas (empresas ou outras) que sustentam administrativa, logística e financeiramente as intervenções de Arqueologia. Problema bem difícil de resolver, mas decisivo para o futuro da Arqueologia em Portugal.
Assim, penso que antes de mais importa estabelecer rigorosamente a terminologia dos conceitos a aplicar.
Recupero aqui a proposta que já fiz no blogue da Al-Madan:

“(…) Importa não confundir a ACREDITAÇÃO DAS EMPRESAS (controlo prévio da sua capacidade para a realização de trabalhos de Arqueologia -- e quais tipos de trabalhos), com a CREDENCIAÇÃO DOS ARQUEÓLOGOS (controlo ainda prévio e genérico da capacidade individual para a realização de trabalhos de Arqueologia) e AUTORIZAÇÃO PARA INTERVENÇÕES CONCRETAS (controlo, sempre prévio, da adequação de um determinado plano de intervenção à execução de um trabalho arqueológico específico, sobre um sítio determinado).

Para lá do objectivo geral de preservação do património histórico-arqueológico, procurando evitar-se preventivamente que empresas e/ou arqueólogos sem condições materiais ou capacidade técnica provoquem perdas deste património, os valores e interesses protegidos por estes três tipos de fiscalização a priori são claramente distintos.
Simplificando um pouco:

- A CREDENCIAÇÃO DOS ARQUEÓLOGOS, vulgo "carteira profissional" visa antes de mais (1) proteger corporativamente a classe profissional dos arqueólogos, quer no seu interesse individual de garantir a exclusividade da execução de trabalhos de Arqueologia por técnicos especializados, quer (2) no seu interesse colectivo de proteger a imagem social da qualificação deste sector profissional, nomeadamente através da imposição de um código deontológico da profissão;

- A ACREDITAÇÃO DAS EMPRESAS visa: (1) proteger a segurança da actividade económica, garantindo aos diversos agentes económicos que as empresas acreditadas são capazes de executar um serviço para o qual se apresentam no mercado (dispondo para isso de meios materiais, financeiros, equipamento, meios humano e organização suficientes); e, no caso de se optar por um sistema de acreditações discriminantes (por período cronológico, por tipo de trabalho, etc.), (2) promover que os trabalhos de Arqueologia a realizar serão tendencialmente executados pelas equipas que são mais capazes para cada um dos ditos critérios discriminantes;

- Finalmente, a AUTORIZAÇÃO PARA REALIZAÇÃO DE INTERVENÇÕES ARQUEOLÓGICAS CONCRETAS visa sobretudo (1) proteger o interesse público da gestão correcta do património histórico-arqueológico do país, permitindo uma avaliação caso-a-caso quer da justificação da afectação daquele património, quer da adequação dos meios e métodos propostos pelo(s) responsável(/is) técnico(s) da futura intervenção.

Duas notas finais:
1. Obviamente, decorre dos objectivos e dos interesses a proteger por cada um dos mecanismos descritos que a acreditação das empresas e a autorização casuística dos trabalhos devem manter-se na esfera de decisão pública, enquanto a credenciação profissional dos arqueólogos deveria idealmente evoluir para uma estrutura associativa de cariz profissional.
2. Até hoje, revelámos uma incapacidade gritante de criar procedimentos administrativos e estruturas associativas capazes de acreditar empresas e credenciar arqueólogos. Não obstante, isto não significa que a necessidade destas credenciações e acreditações não exista. Em consequência, como solução de recurso, atribuímos ambas estas responsabilidades ao mecanismo da autorização casuística, por exemplo com o procedimento bastante híbrido da necessidade de um primeiro pedido ser apresentado em colaboração com um arqueólogo mais experimentado. Estas soluções, que têm uma data e uma justificação conjuntural clara, estavam a médio prazo votadas a um fracasso inelutável.
Devemos hoje avançar no sentido de institucionalizar aqueles outros procedimentos de forma cristalina.

Em resumo:
1. não penso haver qualquer sobreposição entre credenciação profissional, acreditação de empresas e autorização de intervenção; e
2. em minha opinião, no momento actual da Arqueologia portuguesa, todos os três mecanismos são indispensáveis. (…)”

Se actualmente ainda parece difícil resolver este problema em sede de RTA (desde logo, mais uma vez, por força do carácter incipiente da organização profissional dos arqueólogos), penso que a APA poderá lutar pela inclusão de uma norma de carácter prospectivo que, precisamente:
(1) estatua a questão da autorização casuística; e
(2) preveja a criação de um mecanismo de credenciação de tipo “carteira profissional”; seria um passo de gigante no sentido desta ambição central da actividade da associação.

2.2
Uma questão comum a todas as ordens profissionais, com duas vertentes: os critérios de acesso à “carteira profissional” e a questão da graduação profissional.
Em relação à primeira, concordo que, no momento actual, não pode resolver-se senão em termos de formação académica. Esta situação deveria, porém, evoluir noutro sentido, mas trata-se já aqui de um caminho a percorrer pela APA que nada influi nesta revisão do RTA.
Em relação à questão da graduação profissional, já estão realizadas algumas experiências noutros sectores profissionais. O problema no caso específico da Arqueologia consiste na definição dos efeitos de uma tal graduação, quer dizer: depois de decidirmos quais os critérios de acesso a “arqueólogo de 1ª”, “de 2ª”, etc (ou outra classificação qualquer), a dificuldade maior está em decidir quais as consequências de ter um ou outro estatuto.
A meu ver, importa sobretudo evitar a ideia (recorrente!) de que há tipos de trabalho arqueológico (por ex. a prospecção, o acompanhamento) mais “fáceis” do que outros, e que serão estes a entregar aos arqueólogos pouco experientes. É mesmo uma ideia que me tira do sério esta de pensar que se podem pôr uns licenciados fresquinhos à frente de uma D12 perdida no desaterro de uma auto-estrada, ou mandá-los para o meio dos pinhais procurar cacos e pedrinhas. Estes estão entre os trabalhos mais difíceis da profissão. No INRAP (França), por exemplo, os diagnósticos são sistematicamente feitos pelos arqueólogos mais capazes que eles têm no campo. Não admira: é preciso conhecer tudo de todas as épocas! Assim, penso que dizer que basta ter três aninhos de faculdade e mais umas semanas de campo é capaz de ser exigência a menos para este tipo de coisa. Ou seja: desagrada-me profundamente uma classificação dos tipos de trabalhos de Arqueologia em “mais importante” / “menos importante”, ou em “mais fácil” / “mais difícil”. Penso que importa evitar este tipo de solução, como digo, recorrente, mas um pouco facilitista.

3.1
Já discutido antes, a respeito do ponto 2:
- AUTORIZAÇÃO técnica/científica, casuística, concedida a pessoas individuais, técnicos capacitados (cuja capacidade, justamente, deve tender a avalia-se através da titularidade de uma carteira profissional!);
- ACREDITAÇÃO orgânica, de carácter geral, com validade determinada, reconhecida a pessoas colectivas, com base na demonstração de meios técnicos, materiais, financeiros e humanos.
3.1.1
Completamente de acordo. De resto, esta presunção de que a responsabilidade técnica de uma intervenção deve ser exclusiva de UM arqueólogo até me parece totalmente desfasada da realidade generalizada.
Entretanto, há aqui uma ideia que resulta da prática, nomeadamente em contexto de Arqueologia de salvamento, que me parece ser interessante. A figura do coordenador científico.
Com efeito, esta figura tem vindo a ser utilizada por uma multitude de empresas de Arqueologia, com fins muito distintos e com graus de institucionalização (dentro das empresas, claro, porque a figura é inexistente na lei!).
No estado actual das coisas, parece-me uma figura bastante perigosa, porque serve em muitos casos apenas para justificar a ausência do campo do titular da autorização, assim erigido em “coordenador”. Porém, penso que a figura pode ser interessante se ficar definido que não é ao coordenador que cabe a execução quotidiana dos trabalhos, mas sim ao arqueólogo-director. Cabendo ao dito coordenador apenas uma responsabilidade de conselho científico. Não seria o CV do “coordenador” a ser avaliado para a autorização dos trabalhos. Ou melhor, avaliar-se-ia a capacidade técnica do director e a capacidade científica do coordenador para cada intervenção específica. Penso que se pode ganhar em enquadramento científico das intervenções de salvamento, aproveitando de passagem para regularizar uma situação que está instalada de facto e que corresponde, como disse, a intenções muito díspares.
3.1.2
Estando completamente de acordo com esta separação, que sempre defendi, interrogo-me sobre qual será o âmbito das normas sobre esta “responsabilidade institucional” a incluir num “Regulamento dos trabalhos arqueológicos”? Para além da mera constatação da sua existência. É que nesta responsabilidade estão incluídas sobretudo questões que não são de natureza imediatamente técnica e relacionada com a execução dos trabalhos de Arqueologia… A menos que se institua de Direito a figura do coordenador científico e se confira a estas “instituições” a responsabilidade de uma efectiva “direcção científica”. Solução que eu apoiaria indefectivelmente!

3.2
Mais uma vez, um problema a resolver sobretudo em sede de credenciação dos arqueólogos e de acreditação das instituições. A estas, é preciso impor um conjunto de critérios exigentes relativos a: estrutura de decisão, meios materiais e equipamento, capacidade financeira, direcção científica e actividade de publicação. São critérios muito claros e facilmente quantificáveis.

3.3
Integralmente de acordo, o problema tem que ser revisto, na medida em que texto actual é de aplicação prática impossível. Desconheço a solução!

4
Outro dos pontos fulcrais das alterações necessárias ao actual RTA.
Com efeito, curiosamente, o “Regulamento dos trabalhos arqueológicos” é omisso em relação a quase tudo o que efectivamente regulamente a execução desses trabalhos. A única fase do trabalho de Arqueologia que aqui mereceu atenção consiste na execução dos relatórios.
Porém, no texto actual surgem conceitos indefinidos e, pior ainda, misturados: as referências indistintas ao “relatório” ou específicas ora ao “relatório de progresso”, ora ao “relatório final” criam uma situação de completa confusão acerca da intenção do legislador. Em consequência, se se pode aceitar a redacção do artº 12º, já a norma do artigo 13º será necessariamente a rever profundamente e desdobrar em dois pontos distintos: no artº anterior não se refere um, mas sim dois tipos de relatórios: “de progresso” e “final” e ambos devem aqui merecer tipificação e definição de conteúdos separadamente. Aliás, a situação actual é bastante ridícula: a única interpretação admitida pela redacção actual é a de que o relatório de progresso é em tudo idêntico ao relatório final acrescido de um programa ulterior de trabalhos. Ora, nem isso é prática corrente, nem, de resto, faria qualquer sentido.

Para além disto, importa dizer, como muito bem salienta o documento da APA, que esta normalização de procedimentos e conteúdos que neste artº 13º se tentou (e se deve aprofundar) a respeito dos relatórios das intervenções reveste a forma da imposição de um esforço que tem que alargar-se aos demais campos da actividade técnica do arqueólogo. A determinação de requisitos mínimos a respeito dos procedimentos de campo, nomeadamente (mas não só) de registo, de laboratório e de inventário, deve constituir um objectivo fundamental do RTA. Tenho, contudo, consciência da dificuldade (e dos perigos!) da tarefa. Há algumas experiências europeias a considerar, por exemplo em Itália.

Por fim, em termos de forma do pedido, há no texto actual algumas incongruências e sobreposições entre o requerimento e os documentos anexos solicitados. Mas estas são questões de simples solução.

5
Por fim, a fiscalização. Aqui, quero salientar dois pontos distintos: as questões de fiscalização propriamente dita e as questões relativas às sanções (aos arqueólogos) em caso de prevaricação.
Quanto à fiscalização, devem ser definidos objectivos mínimos, critérios e procedimentos. Porém, a tarefa afigura-se-me assaz complicada num momento em que a opção política consiste precisamente em desmantelar os mecanismos de fiscalização. A relação com as estruturas autárquicas surge cada vez mais inelutável. Esta solução — a que já não escaparemos! — deve ser tratada com extrema precaução: se ela pode trazer a médio/longo prazo benefícios significativos, os riscos que encerra no imediato são enormes e assustadores, quando considerada a assimetria da escala de prioridades e preocupações dos trezentos e picos municípios portugueses.
Esta fiscalização, seja qual for o seu suporte institucional, deve incluir um controle rigoroso das actividades económicas com impacto no registo arqueográfico nacional, mas também incluir a própria fiscalização EFECTIVA da actividade dos arqueólogos. Será decisivo garantir mecanismos de sanção adequados, justos, mas também eficazes e implacáveis na penalização dos infractores. Mecanismos e procedimentos de fiscalização que, na senda do que venho defendendo neste texto, devem tratar de forma específica os responsáveis técnicos pela execução dos trabalhos de Arqueologia e as instituições que sustentam essas intervenções. Também aqui não há nada para inventar: multas e suspensões temporárias da actividade.


Considerandos supra-numerários
Para além das questões tratadas pelo documento da APA, outras me causam hoje preocupação considerável na leitura do texto actual do RTA. Refiro Algumas destas.

a.
É a discutir a permanência da referência ao PNTA em sede de RTA. Para além do mais, por princípio, a investigação em Arqueologia tenderá a ser financiada em sede de FCT, pese embora isso possa doer muito à comunidade (pseudo-)científica dos arqueólogos portugueses.

b.
Preocupa-me bastante a questão, muito mal resolvida pelo texto actual da caducidade anual da autorização. A fórmula anterior (as autorizações “são válidas no ano civil para que são concedidas”) resulta no tratamento diverso dos pedidos de autorização segundo a data em que são apresentados. No limite, uma autorização de 2 de Janeiro é válida por 12 meses e uma de 30 de Dezembro por um dia, situação claramente iníqua.
Trata-se aqui de proteger o direito da tutela à informação — indispensável para a gestão do património arqueológico nacional, mas importa também evitar a interrupção de intervenções em curso por motivos exclusivamente burocráticos. Tal nem seria muito difícil, basta substituir um prazo aleatório “ano civil”, por um prazo de “12 meses”. Com uma redacção do género:
1. As autorizações a que se refere o número anterior são válidas por um período de 12 meses.
2. Em todos os casos de intervenções de Arqueologia que se prolonguem por um período superior a 12 meses, a renovação da autorização dependerá da apresentação e aprovação de um Relatório intercalar do progresso da intervenção durante o período em questão.
3. Os relatórios intercalares referidos no número anterior podem ser entregues ao Igespar, IP. a partir de 15 dias antes da caducidade da autorização em curso.
c.
Não me parece bem resolvida a questão dos prazos de entrega de relatórios e publicações.
Desde logo, incomoda-me um pouco que se ponham todas as situações no mesmo plano e é sabido de todos que se fazem muitas intervenções que se revelam difíceis de publicar… por escassez de dados do próprio registo arqueográfico. Estas situações deveriam ser previstas.
A distinção feita entre contextos urbanos e não-urbanos, por outro lado, parece-me excessivamente simplista e desfasada da realidade arqueológica.

d.
Por fim, penso ser muito importante resolver de forma muito clara a questão da publicidade dos relatórios.
No entanto, a este respeito, sou profundamente contrário à manutenção da possibilidade de aceitação dos relatórios como publicação ou, em sentido inverso e como também já vi, das publicações como relatórios. Estas possibilidades deveriam ser liminarmente eliminadas do RTA: um relatório e uma publicação científica são documentos estruturalmente distintos, com conteúdo e objectivos bem diferentes. Um não pode substituir o outro.


Miguel Almeida
(Dryas Arqueologia)

PF disse...

Contribuição do João Tiago Tavares

Depois da extensa contribuição do Miguel Almeida parece que pouco há a acrescentar ao documento de base, com o qual, genericamente, todos os que se pronunciaram estão de acordo.
Ainda assim, deixaria algumas achegas, que julgo pertinentes.

Ponto 1

1.1/1.2/1.3

Parece-me que a apesar da actual definição de trabalhos arqueológicos ser insuficiente, não se perderia nada em manter uma definição de carácter genérico, sobre o que são os trabalhos arqueológicos, podendo ser suficientemente ampla para incluir os trabalhos de arqueologia subaquática que na actual só muito transversalmente se encontra reflectida.
Esta definição genérica deveria ser acompanhada da explicitação dos conceitos subjacentes a cada tipo de trabalho arqueológico possível de realizar. Poderíamos tomar como exemplo as definições da Lei-quadro dos Museus, que explicita os conceitos de museu e colecção visitável, embora ignore outros que poderiam e deveriam ter sido incluídos. Num outro campo a legislação sobre o ambiente define o conceito subjacente aos diferentes tipos de parques que podem ser criados em território nacional.
Julgo que essa solução permitiria que todos falássemos a mesma linguagem, tornando mais perceptível a quem está fora perceber daquilo que se fala quando se propõe um acompanhamento ou uma sondagem.
Nesta conceptualização, deveriam ser tidos em conta os trabalhos de sondagem geofísica aplicada à arqueologia.
Naturalmente, a definição dos tipos de trabalhos arqueológicos, implicaria que os mesmos fossem transpostos para as ”categorias de trabalhos arqueológicos”, criando-se uma harmonização entre os conceitos teóricos e a prática.

1.4

A participação de técnicos com outras formações deve ser tida em conta, no momento em que seja apresentado um plano de trabalhos arqueológicos em função do sítio arqueológico em concreto. Nos casos em que seja previsível a sua necessidade (e aqui poderia igualmente tipificar-se algumas situações para evitar decisões discricionárias) a sua inclusão na equipa de trabalho, deve ser uma exigência de base.
Nos casos não tipificados, em que se verifique a sua necessidade a solução mais simples será a obrigatoriedade de suspensão dos trabalhos até serem incluídos na equipa esses técnicos. Essa situação poderia ser obviada se à partida, no pedido de autorização fossem indicados técnicos que não estando a integrar a equipa pudessem vir a fazer parte da mesma, logo que detectados os elementos que justificassem a sua presença. Creio, no entanto, que esta situação implica uma disponibilidade de recursos humanos, que a generalidade dos intervenientes no sector não possui.

Ponto 2

2.1/2.2

A actual situação em que a possibilidade de exercício da actividade passa por uma autorização caso a caso é um modelo que não responde às necessidades actuais. Não que preconize o fim desse tipo de mecanismo, ainda que a sua utilidade possa ser questionada, quando há intervenções realizadas sem que os responsáveis peçam as necessárias autorizações à tutela.
De qualquer forma, julgo que seria necessário equacionar a existência de um mecanismo do tipo carteira profissional, que seja um elemento que garanta a credenciação e certificação para a realização de trabalhos.
Naturalmente que este tipo de mecanismo, implica a existência de uma entidade que faça a emissão deste tipo de documento e, aqui, batemos na questão da ordem ou, da não ordem.
Por outro lado, a existência de uma carteira profissional levanta a questão de ser feita uma credenciação por especialidades. Ora, apesar da necessidade de especialização, não devemos esquecer que na generalidade dos casos ainda estamos numa fase de clínica geral e não de especialidade.
Quantas são, por exemplo, as câmaras que têm um especialista nas diferentes áreas de estudo? Certamente uma minoria…
As condições mínimas para o acesso à carreira devem ter em conta a formação de base exigida à data da entrada no activo de cada um, sendo necessariamente adaptadas ao contexto de formação introduzida pelo modelo de Bolonha.
No entanto, a credenciação e certificação, não pode ser encarada como um filtro, apenas a quem está a iniciar a carreira. É necessário que quem é reconhecido, pelo modelo actual, como capaz de dirigir trabalhos, tenha a noção de que em caso de má prática essa credenciação lhe será retirada, constituindo um impedimento efectivo à realização de trabalhos arqueológicos.

Ponto 3

3.1/3.2/3.3

Como se depreende do último parágrafo, entendo que a responsabilidade nominal pela realização de trabalhos se deve manter. No entanto, como medida de salvaguarda de quem dirige os trabalhos, as instituições ou empresas que os enquadram devem ser responsabilizadas de forma solidária pelo seu desenvolvimento.
Também aqui uma má prática teria reflexos na possibilidade da instituição desenvolver novos trabalhos.
Não seria descabido que para a realização de determinados tipos de trabalhos fosse estabelecido no Regulamento de Trabalhos Arqueológicos, as condições logísticas e técnicas que as instituições e empresas deviam possuir, para estarem aptas a realiza-los.
Essa situação serviria de, à partida, como filtro para evitar a realização de trabalhos em que se verifica, após o seu inicio, que há uma incapacidade logística das instituições e empresas para os desenvolver com a qualidade técnica e científica exigível.
Voltando à responsabilização nominal, dos directores dos trabalhos, será importante que o novo regulamento crie mecanismos que assegurem que essa responsabilização é mais que um nome no pedido de autorização.
O director dos trabalhos deverá ter uma presença constante no terreno, evitando-se as situações em que o mesmo nome aparece como responsável por trabalhos que decorrem em simultâneo no Minho e no Algarve. Como ainda não temos o dom da ubiquidade isso significa apenas que na prática alguém que não fez um pedido de autorização assume a responsabilidade prática pelo desenvolvimento do plano de trabalhos assinado por outrem.
Como essa situação em nada contribui para a credibilização da profissão (embora não seja inédita, veja-se as centenas de projectos de arquitectura elaborados por desenhadores e assinados por arquitectos), seria desejável que o novo regulamento lhe pusesse termo.
Sobre as “reserva” e “prioridade científica” concordo com o teor do texto.

Ponto 4

4.1/4.2/4.3

Da mesma maneira que é necessário definir claramente os diferentes tipos de trabalhos arqueológicos é necessário que se normalizem os procedimentos a desenvolver em cada momento dos trabalhos a realizar.
Mais uma vez, se houver esse trabalho de base será mais fácil que todos os agentes envolvidos na actividade arqueológica saibam o que está a ser feito e como deve ser feito.
Um outro aspecto a rever prende-se com o destino dos espólios documentais e materiais. O regulamento em vigor preconiza a entrega a ao IPA ou a um depósito da rede creditada.
No entanto, não há uma definição clara dos requisitos necessários para se estabelecer um depósito que seja creditado, para receber os espólios. Parece-me que esse aspecto é fundamental.
Naturalmente, não se espera que num documento, deste tipo se especifique ao milímetro as condições físicas e técnicas para que necessárias para a creditação do depósito.
No entanto, devem ser estabelecidas condições mínimas de espaço, equipamentos necessários e recursos humanos, para o seu funcionamento.
Do mesmo modo, as condições de entrega dos espólios, devem ficar estabelecidas no regulamento.
Poderá, eventualmente considerar-se que determinadas instituições, nomeadamente os museus com colecções de arqueologia são as entidades preferenciais para receber os espólios. No entanto, aqui terá que se fazer a distinção entre aqueles que estão credenciados pelo IMC e, os que não estão.
Outro aspecto fundamental é a gestão dos espólios documentais. Sendo certo que os mesmos são inseparáveis dos espólios materiais, a instituição que receber estes últimos, deve receber também a documentação associada.
Sendo o panorama editorial escasso, no que à arqueologia diz respeito, essa documentação deveria passar a ser entregue em condições capazes de permitirem a sua disponibilização online, pela entidade que fica com a guarda dos espólios ou com a entidade da tutela.
Deste modo, o acesso á informação tornar-se-ia simples facilitando a investigação e descongestionando os serviços que actualmente concentram toda a documentação produzida.

Ponto 5

5.1/5.2

Concordo que se peça um maior empenho e exigência ao nível da fiscalização no cumprimento do articulado que ficar estabelecido no novo (e já agora no actual) regulamento de trabalhos arqueológicos.
No entanto, essa exigência deve ter consequências directas nos casos em que se verifiquem más práticas, tanto por parte dos autores nominais dos trabalhos, como das entidades que os enquadram, o que remete para a questão da credenciação e exigência de condições mínimas para a realização dos trabalhos.
A articulação no âmbito do quadro legal com as normas do planeamento, ordenamento do território e avaliação de impacte ambiental é importante e facilitará certamente o relacionamento com outros técnicos e os decisores políticos.

João Tiago Tavares
24 de Outubro de 2008